A Santa "Inquisição"
"A Inquisição foi possível porque deu-se mais importância ao Direito Canônico, à unidade da Igreja e do Estado do que à Escritura e aos Santos Pais".(Pe. José A. Besen).
Podemos entender o mundo em que surgiu e progrediu a Inquisição, mas nunca justificá-la. Ela é um atentado ao Senhor misericordioso e paciente, um atentado à dignidade humana, um atentado às convicções religiosas das pessoas, como se os hereges estivessem na heresia por divertimento. Não se pode anunciar o Salvador que morre pelos inimigos torturando, prendendo, matando.
Entre os séculos XI e XII, as penas de morte para os hereges não eram mais um fato inédito, mas a maioria do corpo eclesiástico ainda relutava em aceitar a situação. Pier Damiani (1007-1072) afirmou orgulhosamente que "os santos estão dispostos a sacrificar a própria vida pela fé, mas nunca a matar hereges".
Os Cátaros e o inicio da perseguição
Em 1144, uma multidão revoltosa intencionava lançar as chamas alguns catáros, felizmente Wazo, bispo de Liège, salvou a vida deles. O arcebispo de Milão também protestou contra a multidão que havia linchado alguns hereges cátaros. Bernardo de Chiaravalle, que contribuiu para prender vários hereges, declarou, no entanto, que estes deveriam ser conquistados com a razão, e não com a força. Em 1162, o papa Alexandre III (1159-1181), julgando o caso de alguns cátaros, declarou que "era melhor perdoar o culpado do que tirar a vida de um inocente". Em 1165, em Narbonne, um debate público pacífico explicou a diferença entre católicos e cátaros.
Em suma, na Igreja, observavam-se várias tendências sobre como lidar com os hereges. Na verdade, foi o próprio Alexandre III que deu um passo muito importante para o nascimento da futura Inquisição. Usando as deliberações do Terceiro Concilio de Latrão, ele daria aos bispos ordens expressas para investigar sobre os hereges, mesmo com base em meras suspeitas. Ao poder leigo foi reservado o papel de subordinado do braço executivo da instituição eclesiástica.(Ítalo Mereu, Storia della'intolleranza in Europa, Milão, Bompiani, 2000, p. 121).
Os hereges em questão eram às vezes chamados de cátaros, que significava purificados ou aperfeiçoados. Por outros, incluindo os inimigos, eram chamados de albigensianos ou albigenses, designação derivada de um primeiro centro de suas atividades, a cidade sulista francesa de Albi. Os cátaros merecem ser reconhecidos entre os primeiros alvos de uma perseguição organizada e sistemático promovida pelo catolicismo romano. Embora possam, num sentido geral, ser chamados de cristãos (eles[os cátaros] atribuíam um outro significado teológico a Jesus).
Os cátaros opunham-se inflexivelmente a Roma e à Igreja Romana, viam em Roma a encarnação do mal, a bíblica “Prostituta da Babilônia”. Tinham mais simpatia com doutrinas da Igreja Bizantina ou Ortodoxa Grega. Em alguns aspectos criam na reencarnação, por exemplo tinham elementos em comum com tradições ainda mais ao leste, como o hinduísmo e o budismo. Em última análise, porém, e apesar da simpatia a eles concedida por comentaristas recentes, os cátaros defendiam vários princípios que pouca gente no Ocidente hoje acharia inteiramente aceitável e que não poucos julgariam morbidamente insanos.
Em essência, eram dualistas. Em outras palavras, encaravam toda criação material como intrinsecamente má, obra de uma divindade menor e inferior. Toda carne, toda matéria, toda substância deviam em última análise ser repudiadas e transcendidas em favor de uma realidade puramente espiritual; e só no reino do espírito residia a verdadeira divindade.
Nessa medida, os cátaros representavam uma extensão posterior de uma tradição havia muito estabelecida nos perímetros do Ocidente cristianizado. Tinham muito em comum com os hereges bogomilos dos Bálcãs, dos quais derivavam várias de suas crenças. Ecoavam a heresia mais antiga do maniqueísmo, do terceiro século, promulgada pelo mestre Mani na Pérsia. E incorporavam muitos elementos do dualismo gnóstico que florescera em Alexandria e outras partes nos dois primeiros séculos da era cristã, e que provavelmente se originara no antigo pensamento zoroastriano.
O problema com os cátaros em questão, é que eles, assim como os bogomilos, os maniqueus e os dualistas gnósticos, enfatizavam a importância do contacto direto com o divino, e o seu conhecimento. Esse conhecimento era julgado como gnose, que significa conhecimento de um tipo especificamente sagrado. E ao insistirem numa tal experiência direta e em primeira mão, os cátaros, como seus antecessores, efetivamente excluíam a necessidade de um sacerdócio, de uma hierarquia eclesiástica. Se a maior virtude era a apreensão espiritual e experiencial de cada indivíduo, o sacerdote tornava-se supérfluo como guardião e intérprete da espiritualidade; e o dogma teológico tornava-se irrelevante, uma mera invenção intelectual que brotava da arrogante mente humana, não de qualquer fonte superior ou sobrenatural. Tal posição implicava um flagrante desafio não só às doutrinas, mas à própria estrutura da Igreja Romana.
Os cátaros pregavam o que poderia ser visto como uma forma extrema de teologia cristã ou uma tentativa de levar a teologia cristã às suas conclusões lógicas. Eles próprios viam suas doutrinas como mais próximas do que se dizia que Jesus e os apóstolos haviam ensinado. Certamente estavam mais próximas que o que promulgava Roma. E em sua simplicidade e repúdio ao luxo mundano, os cátaros achavam-se mais próximos que os sacerdotes romanos do estilo de vida adotado por Jesus e seus seguidores nos Evangelhos.
Eles evitavam a violência, o suicidio(muito comum em seitas dualistas), se davam a trabalhos de campo, eram pacifistas natos. É óbvio haviam cátaros maus, como sempre houve adeptos rigorosos e relaxados de qualquer credo. Mas no todo, e independente de suas crenças, os cátaros eram em geral vistos pelos contemporâneos como muito virtuosos. Suas qualidades valeram-lhes considerável respeito e, em comparação, tornaram tanto menos atraentes os sacerdotes romanos.
Segundo um depoimento hoje na biblioteca do Vaticano, um homem conta que, quando jovem, dois colegas o procuraram e disseram: "Os bons cristãos chegaram a esta terra; eles seguem o caminho de São Pedro, São Paulo e dos outros Apóstolos; seguem o Senhor; não mentem; não fazem aos outros o que não gostariam que os outros fizessem a eles".
A mesma testemunha também declara haverem-lhe dito que os cátaros são os únicos que seguem os caminhos da justiça e da verdade que os Apóstolos seguiram. "Eles não mentem. Não tomam o que pertence aos outros. Mesmo que encontrem ouro e prata caídos em seu caminho, não o pegam, a não ser que alguém lhes faça presente deles. Consegue-se melhor a salvação na fé desses homens chamados hereges do que em qualquer outra fé".
No início do século treze, o catarismo já começara a suplantar o catolicismo no sul da França, e pregadores cátaros itinerantes, viajando a pé pelo campo, geravam constantemente novos convertidos. Esses pregadores não intimidavam, não extorquiam nem traficavam com culpa e chantagem emocional, não tiranizavam nem aterrorizavam com terríveis ameaças de danação, não exigiam pagamento nem subornos a cada oportunidade. Eram conhecidos, pela “suave persuasão. O catarismo no sul da França d e uma maneira mais prática, oferecia uma fuga do ubíquo clero de Roma, da arrogância clerical e dos abusos de uma Igreja corrupta, cujas extorsões se tornavam cada vez mais insuportáveis.
A Situação da Igreja Romana na época
Não se discute que a Igreja na época era desavergonhadamente corrupta.No início do século treze, o Papa descrevia seus próprios sacerdotes como “piores que animais refocilando-se em seu próprio excremento.
Segundo o maior poeta lírico alemão da Idade Média, Walther von der Vogelweide (c. 1170-1230):
"Por quanto tempo em sono jazereis, ó Senhor?... Vosso tesoureiro furta a riqueza que haveis
armazenado. Vosso ministro rouba aqui e assassina ali, E de vossos cordeiros como pastor cuida um lobo".
Os bispos da época eram descritos por um contemporâneo como “pescadores de dinheiro e
não de almas, com mil fraudes para esvaziar os bolsos dos pobres.
O legado papal na Alemanha queixava-se de que o clero em sua jurisdição se refestelava no luxo e na gulodice, não observava jejuns, caçava, jogava e fazia transações comerciais. As oportunidades de corrupção eram imensas, e poucos padres faziam qualquer tentativa séria de resistir à tentação. Muitos exigiam pagamento até pela realização de seus deveres oficiais. Casamentos e funerais não se faziam sem que se pagasse adiantado. A comunhão era recusada até que se recebesse uma doação. Mesmo os últimos sacramentos se recusavam aos agonizantes enquanto não se extorquisse uma soma em dinheiro.
O poder de conceder indulgências, remissão de penitências em expiação por pecados, levantava imensa renda extra.
No sul da França, essa corrupção grassava em particular. Havia igrejas, por exemplo, em que não se dizia missa havia mais de trinta anos. Muitos padres ignoravam os paroquianos e dedicavam-se ao comércio ou mantinham grandes propriedades. O Arcebispo de Tours, um homossexual notório que fora amante do antecessor, exigiu que o bispado vagado de Orléans fosse concedido ao seu amante. O Arcebispo de Narbonne jamais sequer visitou a cidade ou sua diocese.
Muitos outros eclesiásticos banqueteavam-se, tomavam amantes, viajavam em carruagens opulentas, empregavam enormes séqüitos de criados e mantinham estilos de vida dignos da mais alta nobreza, enquanto as almas confiadas aos seus cuidados eram tiranizadas e espremidas numa esqualidez e pobreza cada vez maiores. Dificilmente surpreende, portanto, que uma parcela substancial da população da região, inteiramente à parte de qualquer questão de bem-estar espiritual, desse as costas a Roma e abraçasse o catarismo. Tampouco surpreende que Roma, diante de tais deserções e uma notável queda nas rendas, começasse a sentir-se cada vez mais ameaçada. Essa ansiedade não era injustificada. Havia uma perspectiva concreta de o catarismo deslocar o catolicismo como religião predominante no sul da França e dali poderia facilmente espalhar-se para outras partes.
Em novembro de 1207, O Papa nocêncio III escreveu ao Rei da França e a vários nobres do alto escalão francês, exortando-os a suprimir os hereges em seus domínios pela força militar. Em troca, receberiam recompensas de propriedades confiscadas e as mesmas 27 indulgências concedidas aos cruzados na Terra Santa. O Conde de Toulouse, então, prometeu exterminar todos os hereges de seu feudo.
Julgando não muito entusiástica a sede de sangue do conde, o legado papal, Pierre de Castelnau, exigiu um encontro com ele. A reunião degenerou rapidamente numa briga furiosa, com Pierre acusando o conde de apoiar os cátaros e excomungando-o sumariamente. O conde, que talvez fosse ele mesmo um cátaro, reagiu previsivelmente com ameaças próprias.
Na manhã de 14 de janeiro de 1208, quando Pierre se preparava para atravessar o rio Ródano, um cavaleiro a serviço do conde aproximou-se e matou-o a facadas. O Papa ficou furioso e imediatamente emitiu uma Bula a todos os nobres do sul da França, acusando o conde de instigar o assassinato e renovando sua excomunhão. O pontífice exigia ainda que o conde fosse publicamente condenado em todas as igrejas e autorizou qualquer católico a caçá-lo, além de ocupar e confiscar suas terras.
E não foi tudo. O Papa também escreveu ao Rei da França, exigindo que se fizesse uma “guerra santa” para exterminar os hereges cátaros, descritos como piores que o infiel muçulmano. Todos os que participassem dessa campanha seriam imediatamente postos sob a proteção do papado. Seriam liberados de pagamento de todo juro sobre suas dívidas e isentos da jurisdição dos tribunais seculares. Receberiam plena absolvição de seus pecados e vícios, contanto que servissem um mínimo de quarenta dias.
E daí então, em 1208, quando as cruzadas na Terra Santa ainda prosseguiam e o Reino Franco de Jerusalém lutava pela sobrevivência, o Papa Inocêncio III lançou uma nova Cruzada. O inimigo desta vez não seria o infiel islâmico, do outro lado do Mediterrâneo, mas os adeptos do catarismo. Essa cruzada ficou conhecida como Cruzada Albigense. Foi a primeira lançada num país cristão, contra outros cristãos (por mais hereges que fossem).
Além de todas as vantagens explícitas, oferecia, claro, permissão implícita para saquear, pilhar, roubar e expropriar propriedades. E ainda outros benefícios. O cruzado que pegasse em armas contra os cátaros não tinha, por exemplo, de cruzar o mar. Poupavam-lhe as complicações e despesas de transporte. Também lhe poupavam a tensão de fazer campanha no deserto e no clima opressivo do Oriente Médio. Se as coisas não saíssem bem, ele não seria deixado isolado num ambiente estranho e hostil. Ao contrário, podia voltar para a segurança com bastante facilidade, ou mesmo desaparecer no meio da populaça local.
Em fins de junho de 1209, um exército de quase vinte mil nobres, cavaleiros, homens de armas, servidores, aventureiros e vivandeiros já se reunira à margem do Ródano. Um barão
francês menor, Simon de Montfort, ia surgir como seu comandante militar. O chefe espiritual era o legado papal Arnald Amaury um fanático, cisterciano e, na época, Abade de Citeaux.
A 22 de julho, o exército chegara à estratégica cidade de Béziers, cuja população incluía um considerável número de cátaros. No saque e pilhagem da cidade que se seguiram, perguntaram a Arnald Amaury como distinguir os hereges dos católicos leais e devotos. O legado papal respondeu com uma das mais infames declarações de toda a história da Igreja:
"Matai todos eles. Deus reconhecerá os Seus".
No massacre, morreram cerca de 15 mil homens, mulheres e crianças. Com o triunfalismo que beirava a alegria exática, Arnald Amaury escreveu ao Papa que não se poupara idade, sexo ou status. O saque de Béziers aterrorizou todo o sul da França. Quando os cruzados ainda tentavam reagrupar-se em meio às ruínas fumegantes, já chegava uma delegação de Narbonne, oferecendo entregar todos os cátaros e judeus (que a essa altura também se haviam tornado, “alvos legítimos) da cidade, além de abastecer o exército de alimentos e dinheiro.
Os habitantes de outras cidades e aldeias abandonaram suas casas e fugiram para as montanhas e florestas. Mas os cruzados não estavam decididos apenas a restaurar a supremacia de Roma. Também queriam o completo extermínio de todos os hereges, além de tudo que pudessem saquear. Em consequência, a campanha arrastou-se.
A 15 de agosto, após um curto sítio, Carcassonne se rendeu e Simon de Montfort tornouse Visconde de Carcassonne. Em todo o sul, hereges eram queimados às dezenas, e quem tentasse opor-se acabava na forca. Mesmo assim, os cátaros apoiados por muitos nobres sulistas, que procuravam resistir às depredações de que eram vítimas retaliaram, e muitas cidades e castelos trocaram de mãos repetidas vezes.
O rancor e a escala do massacre aumentaram. Inocêncio III, com os decretos Licetheli, de 1199, e Qualiter et quando, de 1206, estabeleceu que a acusação de heresia podia ser formalizada mesmo com base em "fama pública", ou seja, nos boatos que corriam sobre dada pessoa.(Natale Benazzi, Matteo D'Amico, Il libro nero dell'lnquisizione. La hcostruzione dei grandi processi, Casale Monferrato, Edizioni Piemme, 1998, p. 40).
Em 1213, o Rei de Aragão tentou intervir em favor dos cátaros e nobres do sul; mas seu exército foi derrotado na Batalha de Muret, e ele próprio morto. No outono de 1217, os cruzados caíram sobre Toulouse, e seguiu-se um sítio de nove meses.
A 25 de junho de 1218, o próprio Simon de Montfort morria nas muralhas da cidade, atingido por um pedaço de alvenaria lançado com uma catapulta por uma das mulheres entre os defensores. Com a morte de Simon, o exército dos cruzados começou a desfazer-se, e uma paz nervosa desceu sobre a região devastada. Não durou muito.
Em 1224, lançava-se nova cruzada contra o sul, tendo o Rei Luís 8 como comandante militar e o veterano fanático Arnald Amaury ainda presidindo como chefe eclesiástico. Apesar da morte do rei francês em 1226, a campanha continuou até quando, em 1229, todo o Languedoc já fora efetivamente anexado pela coroa francesa.
Outras revoltas cátaras contra essa nova autoridade ocorreram em 1240 e 1242. A 16 de março de 1244, Montségur, o mais importante bastião cátaro remanescente, caiu após um demorado sítio, e mais de 200 hereges foram imolados numa pira no pé da montanha em que ficava o castelo.
Quéribus, a última fortaleza cátara, caiu onze anos depois, em 1255. Só então cessou por fim a
resistência organizada cátara, àquela altura, grandes números de hereges sobreviventes haviam fugido para a Catalunha e a Lombardia, onde estabeleceram novas comunidades. Mesmo no sul da França, porém, o catarismo não morreu de todo. Muitos hereges simplesmente se fundiram na população local e continuaram a abraçar seu credo e praticar seus rituais na clandestinidade. Permaneceram ativos na região por pelo menos mais meio século, e durante as primeiras duas, décadas do século 14 houve um ressurgimento cátaro em torno da aldeia de Montaillou, nos Pirenéus franceses. A essa altura, porém, já se estabelecera uma instituição mais sinistra que qualquer exército cruzado para cuidar dos hereges.
Em 1229, um concilio reunido em Toulouse, em uma região que retomara a "verdadeira fé" com as armas e o extermínio, criou oficialmente o Tribunal da Santa Inquisição. Mais tarde, o papa Gregório IX (1227-1241) tirou dos bispos o controle dos processos contra os hereges e os confiou a comissários especiais escolhidos entre dominicanos e franciscanos. (David Christie-Murray, op. cit, p. 156-7).
Justamente os membros das ordens mendicantes, que haviam sido acusadas de heresia, tornaram-se os mais ferrenhos perseguidores de quem professava idéias não ortodoxas. Muitos conventos franciscanos foram dotados de prisões para os hereges, mas também para os frades culpados de rebeliões.
A partir desse movimento, a Inquisição adquiriu uma estrutura autônoma, tornando-se uma verdadeira polícia da Igreja, com tarefas de investigação e repressão. Os inquisidores tinham plenos poderes, inclusive o de depor e mandar prender eclesiásticos que defendessem hereges.
O quadro foi completado por Inocêncio IV (1243-1254), que deliberou o recurso à tortura para "promover a obra de fé de maneira mais verdadeira". Esta deveria ser realizada por autoridade secular, mas depois, por questões práticas, os inquisidores e seus assistentes também receberam permissão para "sujar as mãos", com a possibilidade de darem a absolvição uns aos outros. Além da política de repressão, a Inquisição usou também a de "colaboração". Ainda Inocêncio IV, em 1426, autorizou que fosse reduzido o período de noviciado para os cátaros convertidos que quisessem entrar para a ordem dos dominicanos e se tornar inquisidores.
Bonifácio VIII (1294-1303) permitiu "que no processo inquisitório contra a maldade herética se agisse de maneira simples e extrajudicial, longe da confusão dos advogados e do procedimento judiciário".(Ítalo Mereu, op. cit, p. 173).
Os territórios da cristandade foram divididos em distritos, correspondentes às Províncias das Ordens Mendicantes. Para cada distrito, era designado um inquisidor junto com um séquito de policiais, espiões e torturadores. Os tribunais da Inquisição eram itinerantes. O terreno era preparado por um pregador, que percorria as várias cidades e povoados alguns dias antes do inquisidor e concedia indulgências a todos que abjurassem a eventuais convicções heréticas e dessem o nome de outros pecadores.(David Christie-Murray, op. cit, p. 157).
Contemporaneamente, o poder temporal também contribuiu para a luta contra as heresias. Além disso, um Estado cristão que tolerasse a heresia poderia receber excomunhão, interditos, além de correr o risco de ser alvo de uma Cruzada.
Frederico Barba-Ruiva, em 1184, declarou os hereges ilegais.
Em 1197, Pedro de Aragão os condenou à fogueira.
Como já lembramos, o Tratado de Meaux, de 1229, que sucedeu a Cruzada anticátaros, equiparava o crime de heresia ao de lesa-majestade, delito punível com a pena de morte.
O imperador Frederico II emanou, entre 1220 e 1239, uma série de editos cada vez mais cruéis, com os quais condenou os hereges ao confisco dos bens, ao exílio, à prisão perpétua e, finalmente, à fogueira.(Benazzi, D'Amico, op. cit, p. 32).
Na França, a condenação à fogueira, já aplicada de fato, tornou-se lei para todos os efeitos em 1270.
Na Inglaterra, só foi aprovada em 1401, com o estatuto que tinha o estranho nome de Da haeretico comburendo.(David Christie-Murray, op. cit, p. 158).
A aliança entre trono e altar para frear um fenômeno que ameaçava tanto a autoridade civil quanto a religiosa se tornou um dos traços constitutivos da Inquisição também nos anos seguintes à sua criação. Os tribunais da Inquisição emitiam suas condenações, mas era o "braço secular" que as executava.
Portanto, uma denúncia anônima ou a suspeita de heresia já eram suficientes para ser investigado; suspeita essa que podia ser "leve", "veemente" ou "violenta", de acordo com o juiz. Até mesmo a prática assídua demais da oração e do jejum podia levantar suspeitas.
Diante dos tribunais da Inquisição, um suspeito era considerado culpado, a menos que conseguisse provar a própria inocência. "Para a Igreja, ser investigado equivale a ser legitimamente suspeito. O inquisidor poderá (ou melhor, deverá) investigar e julgar, partindo sempre da presunção de que o imputado — ou seja, o réu — [...] é culpado, e, conseqüentemente, deve confessar a própria culpa, o que significa que o inquisidor não deverá julgar com base no fato ou fatos provados, mas na suspeita; não no que retém dos atos, mas no que suspeita ser." (Mereu, 1200, p. 187.) Esse procedimento se contrastava bastante com o direito romano e com o germânico, de origem bárbara, ambos de tipo acusatório (ou seja, o acusador deve fornecer as provas do que afirma, e não o contrário) e baseados na presunção de inocência.
As provas e os depoimentos eram colhidos secretamente, sem o conhecimento do imputado. A construção da acusação não era nada sutil: podiam ser colhidos depoimentos de mulheres, crianças, hereges, excomungados, "arrependidos", inimigos pessoais, mentirosos declarados e criminosos. Os patrões podiam testemunhar contra os empregados, e os empregados contra os patrões. Naturalmente, também eram válidas as declarações conseguidas por meio de tortura.
O suspeito de heresia era convocado pelos inquisidores sem saber as motivações, e quando se apresentava, antes de tudo, era-lhe perguntado se tinha idéia da razão por que fora chamado. Então, as acusações eram lidas de forma sumária. O réu não tinha direito de saber quem o acusava nem de confrontar os acusadores ou ler todos os atos que lhe diziam respeito. Eventuais testemunhas de defesa corriam o risco de, por sua vez, serem acusadas de cumplicidade. Aqueles que colaboravam com os inquisidores, ajudando-os a pegar um suspeito, por exemplo, obtinham, em compensação, as mesmas indulgências que os peregrinos que iam à Terra Santa.
Os processos da Inquisição não acabavam nunca com a total absolvição. Mesmo quando não era condenado, o imputado devia abjurar a heresia da qual era acusado. Em todos os casos, a instrução contra ele podia ser aberta a qualquer momento. O mero fato de ser suspeito de heresia o transformava automaticamente em reincidente em caso de novo processo.
O Manual do inquisidor, de Eymerich, descreve uma série de "malícias" dos acusados nos processos: dar respostas elusivas, dizer que não sabe ou fingir-se de louco. Como diferenciar alguém verdadeiramente louco de quem finge sê-lo? Eymerich não tem dúvidas: "Para ter certeza, será preciso torturar o louco, seja ele falso ou real. Se não for louco, dificilmente continuará sua farsa se tomado de dor."(Nicolau Eymerich, Francisco Pena, Il Manuale dell'lnquisitore. Organizado por Luis Sala-Molins, Roma, Fanucci Editore, 2000).
Por lei, a tortura só podia ser infligida uma vez, mas na verdade era repetida enquanto o inquisidor achasse necessário, com a desculpa de se tratar de uma única sessão com vários "intervalos". Se a instrução, a tortura e os debates aconteciam em segredo, a sentença e a subseqüente execução mereciam o máximo de publicidade. Como explica um eclesiástico do século XVI: "É preciso lembrar que o principal escopo do processo e da condenação à morte não é salvar a alma do réu, mas buscar o bem público e aterrorizar o povo... Não resta dúvida de que instruir e aterrorizar o povo com o proferimento das sentenças... seja uma boa ação."(Nicolau Eymerich, Francisco Pena, op. cit).
"As sentenças [...] eram executadas aos domingos, durante a grande missa na catedral, com a participação das autoridades civis. Os suspeitos confessavam seus erros e abjuravam publicamente antes de se submeter à penitência (nunca chamada de pena ou punição), que podia ir de tempo de reclusão à morte, passando pela flagelação ou a peregrinação sob coação. Aqueles que permanecessem obstinadamente fiéis a suas próprias posições ou que recaíssem na heresia eram conduzidos para fora da igreja e entregues aos magistrados com a recomendação de serem caridosos e não causarem derramamento de sangue. A suprema hipocrisia de tudo isso estava no fato de que, se o magistrado não mandasse as vítimas para a fogueira no dia seguinte, seria processado de co-autoria em heresia." (David Christie-Murray, op. cit, p. 157-158).
Todavia, nem sempre as execuções públicas conseguiam concretizar sua intenção de intimidar o povo. Às vezes, obtinham até o efeito contrário. Em 1279, por exemplo, a multidão que assistia à execução da herege Olivia de Fridolfi, em Parma, ficou tão revoltada com a crueldade do espetáculo (parece que foi queimada "em fogo lento") que deu início a um tumulto. O convento dominicano vizinho, que também hospedava o Tribunal da Inquisição, foi invadido e saqueado. Os frades que lá se encontravam foram expulsos a pauladas.(Rino Ferrari, Fra Gherardo Segarello libertário di Dio, Quaderni dolciniani, Biella, Centro di Studi Dolciniani, p. 40).
Nem os mortos escapavam da fogueira. Vários notáveis e eclesiásticos (mais adiante falaremos do caso de Wycliffe) foram declarados hereges após a morte, e seus corpos foram exumados e entregues às chamas. O primeiro ato da Inquisição espanhola medieval, por exemplo, foi a execução póstuma do conde Raymond de Forcalquier, em 1257. A prática da condenação póstuma não tinha apenas um valor simbólico: a excomunhão era retroativa e previa o confisco dos bens pertencentes aos condenados, prejudicando os herdeiros legítimos.
Em toda a história da Igreja, como já vimos, não faltaram contradições, crimes, perseguições e até guerras por motivos de fé. Mas, muitas vezes, eram decorrentes do fanatismo ou da ambição de soberanos ou pontífices, do clima histórico de outras épocas ou da histeria coletiva. Podia-se falar de "luzes e sombras" de um fenômeno complexo e articulado.
A organização da Inquisição determinou um verdadeiro salto de qualidade dentro dos aparatos burocráticos: a estrutura interna eclesiástica se moldou e adaptou para melhor realizar a obra dos que estavam encarregados de revelar e destruir os hereges. Os bispos foram superados em suas prerrogativas; a delação, a confissão extraída com tortura, o recurso a suplícios públicos e execuções capitais "para dar o exemplo" se tornaram práticas habituais e aceitas, se não abençoadas. E criticar ou obstar o trabalho dos inquisidores era considerado diabólico.
Mas, além disso, aos poucos caiu uma pesada capa sobre todas as práticas religiosas. Podia-se rezar em grupo, mas só nas formas e maneiras consentidas pela Igreja. Podia-se ler o Evangelho, mas só com uma autorização escrita. Podiam-se venerar os santos, mas apenas os "oficiais"; os mortos com "cheiro de santo", não reconhecidos pela Igreja, podiam ser exumados e queimados para evitar o nascimento de cultos populares incontroláveis.(G.G. Merlo, Eretici ed eresie medievali, Bolonha, Il Mulino, 1989).
O sexo era pecado, mesmo no seio do matrimônio, mas o cristão casado que fizesse voto de castidade poderia ser suspeito de heresia. Em suma, tudo que não era proibido era obrigatório. Ou melhor, às vezes o proibido e o obrigatório coincidiam.
A Inquisição medieval chegou ao ápice de sua atividade na metade do século XIV, para chegar a uma lenta decadência nos 150 anos sucessivos, em especial na Itália.(Romano Canosa, Storia delllnquisizione in Itália, vol. 1, Roma, Sapere 2000,1986, p. 7).
Os motivos do declínio residiam paradoxalmente no sucesso de sua obra, mas também na vulnerabilidade das nascentes monarquias nacionais a qualquer forma de interferência externa.
A história que causou o cisma de Lutero, por exemplo, é tratada por canais diferentes dos inquisitoriais. Só depois da difusão da Reforma em toda a Europa, a Cúria romana relançou a Inquisição, com a intenção de impedir a difusão das idéias protestantes em todos os territórios que ainda permaneciam sob o controle da Santa Sé.
Texto extraído do site Firme Fundamento