O cão de guarda da Inquisição - Por Lucas Banzoli
O cão de guarda da Inquisição - Por Lucas Banzoli

 

Suponhamos que eu queira matar o Fulano, mas não queria me manchar de sangue com essa morte. Então eu peço que Beltrano faça o trabalho sujo em meu lugar, matando aquele indivíduo que eu não quero mais ver vivo. Se Beltrano começar a relutar ou a pensar muito, eu começo a fazer uso da minha autoridade para ameaçá-lo. Eu digo que se ele não me obedecer e não matar o Fulano, ele vai sofrer sérias consequencias, como ser deposto de algum cargo que ocupe em sua empresa. Após insistir e ameaçar Beltrano, ele aceita a proposta e mata o Fulano.

A imprensa fica revoltada, porque Fulano morreu por minha culpa. Ela sabe que eu pedi que Beltrano o matasse, mas eu me defendo, dizendo:

– Eu não matei ninguém! Quem matou foi o Beltrano, aquele malvado e perverso! Eu sou do bem, veja como as minhas mãos não estão sujas de sangue!

Embora a opinião popular da cidade seja massivamente em favor da minha punição (e não apenas da punição de Beltrano), uma meia dúzia de retardados mentais, que sofreram forte carga de lavagem cerebral por toda a vida ao ponto de se tornarem zumbis, começam a fazer campanha em meu favor, dizendo:

– Apenas o Beltrano é culpado, parem de falar mal do Lucas! O Lucas matou pouca gente, mas esse Beltrano aí é um bandido sem escrúpulos da pior espécie, é ele o culpado por todos os males! Só o Beltrano é responsável pela morte do Fulano; se só dependesse da vontade do Lucas nada disso teria acontecido!

                                                                  ***

Sim, esta é uma estória fictícia. Graças a Deus eu não matei ninguém; afinal, não sou a Igreja Católica. Mas ela serve como analogia para mostrar a safadeza de certos apologistas católicos pilantras que tentam defender a inquisição jogando toda a culpa no poder civil. Sempre quando um protestante cita algum episódio de chacina, tortura, massacre, execução ou horrores de qualquer espécie, o papista se defende jogando toda a culpa dessas milhões de mortes nas costas do poder civil, ficando apenas com uma pequena quantidade de execuções atribuídas à Igreja propriamente dita.

Muitos católicos aceitam apenas 6 mil mortes na conta da inquisição, enquanto outros ainda mais lunáticos dizem que foi apenas 30, e outros, bisonhamente, dizem que a inquisição nunca existiu, da mesma forma que alguns neo-nazistas negam o holocausto. E se algum protestante cita os vários casos onde pessoas não-católicas foram ameaçadas, perseguidas, torturadas, queimadas ou executadas de alguma maneira, imediatamente o papista tira a carta na manga que todo embusteiro tem: a culpa é do poder civil, e a Igreja não tem nada a ver com isso!

O que o apologista católico definitivamente não vai contar a você é que, assim como no exemplo ilustrativo do início do artigo, o poder civil matava porque era a própria Igreja que mandava que ele matasse. Ou seja, a Igreja matava alguns (uma minoria) de forma direta, através de suas próprias instituições internas, e outros (a maioria) ela matava de forma indireta, compelindo o poder secular a matar, sob ameaças de excomunhão e até de deposição do cargo.

Eu poderia citar aqui centenas de historiadores que confirmam isso, mas aí os revisionistas iriam rebater com a meia dúzia de “historiadores” revisionistas que eles usam e ficaríamos eternamente em um fogo cruzado de citações de historiador x e y. Por isso, eu preferi acabar logo com a palhaçada revisionista e pesquisar nas fontes primárias, ou seja, nos próprios concílios ecumênicos da Igreja Romana daquela época. Ao pesquisar sobre a relação entre a Igreja e o poder secular, ficou claro que o poder secular não matava contra a vontade da Igreja (como os papistas embusteiros afirmam), mas sim por causa da vontade da Igreja.

O Quarto Concílio de Latrão (1123), por exemplo, determina que os hereges sejam entregues às autoridades seculares, para a “devida punição”:

“Nós excomungamos e anatematizamos toda heresia erguida contra a fé santa, católica e ortodoxa que temos exposto acima. Condenamos todos os hereges, quaisquer que sejam os nomes que podem ir abaixo. Eles têm rostos diferentes, mas na verdade suas caudas são amarradas juntas, na medida em que são similares em seu orgulho. Que aqueles condenados sejam entregues às autoridades seculares presentes, ou aos seus oficiais de justiça, para a devida punição[1]

Portanto, embora seja verdade que geralmente era o poder secular que matava os “hereges”, era a Igreja que entregava essas pessoas ao poder secular, em vez dela ser essa coisa boazinha que se opunha às autoridades civis malvadas, como os apologistas católicos costumam pintar. A Igreja Romana pregava abertamente a “censura eclesiástica”, na qual as autoridades seculares eram compelidas a exterminar os “hereges” da terra deles:

“Que as autoridades seculares tenham isso em conta e, se for necessário, que sejam obrigados pela censura eclesiástica, se desejam ser reputados por fieis, que façam um juramento público pela defesa da fé no sentido de que vão buscar, na medida do possível, exterminar (exterminare) das terras sujeitas a sua jurisdição a todos os hereges designados pela Igreja. Portanto, cada vez que alguém é promovido a autoridade espiritual ou temporal, está obrigado a confirmar este artigo com um juramento”[2]

Embora nas traduções que consultei do referido concílio (para o português e para o espanhol) conste a palavra “expulsar”, eu conferi que o original em latim traz o termo exterminare, que eu acho que ninguém precisa ser expert em latim para saber o que significa. Os tradutores católicos, tentando suavizar a monstruosidade do concílio, mudam as palavras para se ajustar à versão mais “tolerante” da Igreja moderna. Note ainda que o mesmo cânone diz que quando alguém é promovido a autoridade espiritual ou temporal ela se torna OBRIGADA a confirmar este artigo (que manda exterminar os hereges) sob juramento. Nada que se pareça com o poder civil matando contra a vontade da Igreja!

O mesmo concílio insano ainda ameaça severamente as autoridades civis que rejeitarem seguir essas ordens para matar os hereges:

“Se, contudo, um senhor temporal, que recebeu as instruções exigidas pela igreja, se esquecer de limpar o seu território desta porcaria herética, ele deve ser vinculado com o vínculo de excomunhão dos bispos metropolitanos e outros da província. Se ele se recusa a dar satisfação dentro de um ano, a mesma será comunicada ao Sumo Pontífice para que ele possa, em seguida,declarar seus vassalos absolvidos de sua fidelidade para com ele e tornar a terra disponível para ocupação dos católicos para que estes possam, depois de ter expulsado os hereges, não fazer oposição e preservar a pureza da fé[3]

O cânone acima é autoexplicativo. A autoridade civil que se recusasse a “limpar seu território” dos hereges (=exterminar todos eles) seria primeiro excomungada, e se mesmo assim ela continuasse se recusando a seguir a ordem da Igreja este senhor feudal perderia a sua propriedade(!), todos os seus vassalos estariam livres de obedecê-lo e ocupariam as terras deste senhor a la MST, para então fazer o que este senhor não fez: acabar com os hereges. Os católicos que assim agissem, exterminando os hereges, ganhariam a mesma indulgência prometida para aqueles que lutassem nas Cruzadas, ou seja, a Igreja bancaria o assassinato do cidadão, concedendo-lhe indulgência:

“Católicos que tomam a cruz e avançam para cima a fim de exterminar os hereges gozarão da mesma indulgência, e reforçadas pelo mesmo privilégio santo, como é concedido para aqueles que vão para o auxílio da Terra Santa. Além disso, determinamos excomunhão aos crentes que recebem, defendem ou apoiam os hereges”[4]

Além disso, no Terceiro Concílio de Latrão (1179) a Igreja incentivava a escravidão dos “hereges”, mandava confiscar os seus bens e ordenava que os católicos os atacassem com armas:

“Os seus bens estão a ser confiscados e os príncipes estão livres para submetê-los à escravidão (...). Na autoridade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, concedemos aos fiéis cristãos que peguem em armas contra eles”[5]

O poder secular estava tão intimamente relacionado ao poder eclesiástico que a ele era atribuída rotineiramente a linguagem de “braço”, ou seja, como uma mera extensão do corpo (Igreja), em vez de um entidade totalmente à parte, como os fanáticos papistas querem nos convencer. Vale lembrar que naquela época inexistia o conceito moderno de “Estado Laico”, ou seja, não havia separação entre Igreja e Estado, e o Estado também era católico, governado por reis católicos e submetidos à obediência da Igreja, que em alguns casos chegou até mesmo a depor os reis(!), como quando o papa Gregório VII depôs o imperador Enrique IV, dizendo:

“Proíbo ao rei Enrique, o qual, por insensato orgulho, se lançou contra a Igreja, governar o reino da Alemanha e da Itália. E desligo a todos os cristãos do juramento que os unia a ele, e proíbo a todo o mundo que o reconheça como rei’”[6]

E, de fato, Enrique foi deposto do cargo!

É interessante notar que os papas naquela época tinham um poder temporal tão grande quanto o dos reis e do imperador (e às vezes até maior!), chegando muitas vezes a depor ou a excomungar reis, e, mesmo assim, nunca chegou a excomungar nenhum rei por matar ou torturar “hereges”. Este fato, por si só, já deveria ser o bastante para calar a boca daqueles que dizem que o poder secular malvadão matava todo mundo contra a vontade da Igreja, que, coitadinha, nada podia fazer para impedir toda essa carnificina.

A Igreja tinha poder para impedir, mas nunca impediu, porque considerava o poder secular o seubraço para o qual ela entregava à morte quem ela considerava “herege”, tal como diz o Quarto Concílio de Latrão:

“Se qualquer pessoa age de outra forma, deixe-a saber que ela foi atingida pela espada da excomunhão e se ela não retornar a seus sentidos será deposta no ministério da igreja, com o braço secular a ser chamado em caso necessário, para abafar tamanha audácia”[7]

O cânon 71, falando sobre a “trégua de Deus”, diz que “o poder secular será invocado pela autoridade eclesiástica contra eles”[8]. Como vemos, o poder secular não era outra coisa senão uma ferramenta usada pela Igreja para punir quem ela achava que devia ser punido. O poder secular não estava em conflito com a Igreja, mas a serviço dela! Desde pelo menos o Segundo Concílio de Latrão (1139) a Igreja se utilizava do poder secular para exigir a punição dos hereges:

“Aqueles que, simulando um tipo de religiosidade, condenam os sacramentos, nós expulsamos da igreja de Deus e condenamos como hereges, e exigimos que eles sejam constrangidos pelo poder secular[9]

O Concílio de Florença (1431), longe de coibir a carnificina e de separar Estado e Igreja, só piora o preconceito, intolerância, tirania e monstruosidade praticados pela Igreja mediante o seu “braço secular”. Podemos começar mostrando a discriminação covarde imposta contra os judeus convertidos, os quais eram proibidos de prosseguir com seus costumes judaicos sob a ameaça dos inquisidores e do “auxílio do braço secular”:

“Os convertidos devem ser proibidos, sob pena de severas sanções, de enterrar seus mortos de acordo com o costume judaico ou de observar de alguma forma o sábado e outras solenidades e rituais de sua seita. Em vez disso, eles devem frequentar nossas igrejas e sermões, tal como os outros católicos, e conformar-se em tudo aos costumes cristãos. Aqueles que mostrarem desprezo a isso devem ser delatados aos bispos diocesanos ou aos inquisidores de heresia por seus párocos, ou por outros que lhe são confiadas por lei ou costume antigo sobre tais assuntos.Deixem-nos serem punidos, com o auxílio do braço secular se necessário, para dar exemplo aos demais[10]

Se essa era a situação do judeu convertido, imagine como era a situação do judeu não-convertido! Felizmente, você não precisa imaginar nada. O próprio concílio responde isso por nós:

“Além disso, renovamos os cânones sagrados, que ordenam os bispos diocesanos e os poderes seculares a proibir em todos os sentidos judeus e outros infieis de ter cristãos, homens ou mulheres, em suas famílias prestando serviços, ou como enfermeiros de seus filhos, e os cristãos de entrar com eles em festas, casamentos, banquetes ou banhos, ou em muita conversa, ou em tomá-los como médicos ou agentes de casamentos ou mediadores nomeados oficialmente de outros contratos. A eles não devem ser dadas outras repartições públicas, ou admitidos a quaisquer graus acadêmicos. Eles estão proibidos de comprar livros eclesiásticos, cálices, cruzes e outros ornamentos de igrejas, sob pena da perda do objeto, ou a aceitá-los em penhor, sob pena de perda do dinheiro que emprestou. Eles estão obrigados, sob severas penas, de usar algum vestuário em que possam ser claramente distinguidos dos cristãos. A fim de evitar relações sexuais mútuas, eles devem habitar em áreas distantes, nas cidades e vilas que estão para além das residências dos cristãos e o mais distante possível de igrejas. Nos domingos e outras festas solenes que não se atrevam a abrir suas lojas ou trabalhar em público”[11]

Este preconceito covarde e desumano contra o povo judeu torna-se ainda mais deplorável quando constatamos que esses mesmos judeus eram em geral mais bem tratados pelos sarracenos (muçulmanos) do que pelos próprios católicos. Os judeus conviviam pacificamente com os muçulmanos em Jerusalém, quando o exército de bárbaros e selvagens conhecidos como “cruzados” entrou na cidade, matando ao fio da espada homens, mulheres, crianças e bebês, e reuniu os judeus na sinagoga, onde foram, sem piedade, queimados vivos[12]. Depois que os cristãos tomaram posse da cidade, os judeus fugiram para as cidades muçulmanas e bizantinas, onde havia mais tolerância.

Geoffrey Blainey afirma que na nova Roma católica as sinagogas, que por vezes tinham estado a favor dos governadores romanos, eram agora desprezadas. Em menos de um século, os judeus perderam seu direito de casar-se com cristãos, a não ser que mudassem de religião, e perderam seu direito de servir o exército. Não podiam tentar converter outras pessoas à sua religião; em vários lugares, as multidões destruíam sinagogas”[13]. Não há nada que Hitler tenha sentido contra os judeus que já não tivesse sido instigado, há muito antes, pelos católicos romanos – e apoiados nos próprios concílios oficiais da Igreja, dito “infalíveis” (leia-se: preconceituosamenteinfalíveis).

O mesmo concílio ainda mostra o juramento que o novo integrante do clero tinha que prestar, e que, entre outras coisas, prescrevia a entrega ao “braço secular” para lidar com os hereges:

“Esta é a fé, santo pai, que eu juro e prometo manter e observar e ver que ela é mantida e observada em todos os detalhes. Eu me engajarei e solenemente prometo privar de todos os seus bens e benefícios, de excomungar e denunciar como herético e condenado, quem rejeitar isso e levantar-se contra isso, e, se ele for obstinado, para degradá-lo e entregá-lo ao braço secular[14]

Essa realidade se fez bastante presente na condenação do grande John Huss, um dos pré-reformadores mais importantes, o qual foi queimado vivo na fogueira enquanto cantava um hino de louvor a Deus. No caso dele, bem como no de muitos outros, a Igreja o entregou às autoridades seculares, sabendo que a decisão já estava tomada – a morte na fogueira:

“Este santo sínodo de Constança abandona John Huss ao juízo da autoridade secular e decreta que ele será abandonado ao tribunal secular”[15]

Um dos artigos condenados de John Huss, mencionados no mesmo Concílio de Constança (1414), é um em que Huss diz:

“Os doutores que afirmam que toda pessoa submetida a censura eclesiástica, se se recusa a ser corrigido, deve ser entregue ao juízo da autoridade secular, estão, sem dúvida, seguindo os sacerdotes, os escribas e os fariseus que entregaram à autoridade secular o próprio Cristo, pois eles não estava dispostos a cumprir todas as coisas, dizendo: ‘Não é lícito para nós colocar qualquer homem à morte’, e estes deram-lhe ao juiz civil, de modo que estes homens são assassinos ainda maiores do que Pilatos”[16]

Huss comparava o que o catolicismo romano fazia em sua época com aquilo que os fariseus e mestres da lei fizeram com Cristo. Os fariseus não mataram Jesus com suas próprias mãos, mas queriam vê-lo morto e para isso o entregaram à autoridade civil. No entanto, em vez de Jesus dizer que a culpa recaía apenas sobre Pilatos (autoridade civil), ele disse que aqueles que o tinham entregado a ele (autoridades religiosas) tinham culpa maior ainda do que Pilatos (Jo.19:11). O catolicismo romano fazia exatamente a mesma coisa em pleno século XV. O apelo de Huss não adiantou, e ele acabou sendo queimado vivo do mesmo jeito.

Não satisfeito com isso, o papa Martinho V (1417-1471) ainda enviou uma carta ao rei da Polônia ordenando o extermínio dos hussitas (seguidores de John Huss):

"Saiba que os interesses do Santo Governo, e daqueles de sua coroa, consideram o seu dever exterminar os hussitas. Lembre-se de que essas pessoas ímpias se atrevem a proclamar princípios de igualdade; eles afirmam que todos os cristãos são irmãos... que Cristo veio a terra para abolir a escravidão; eles chamam as pessoas à liberdade, isto é à aniquilação de reis e bispos. Enquanto ainda há tempo, pois, levante suas forças contra a Boêmia; queime, massacre, faça desertos por toda parte, porque nada poderia ser mais agradável a Deus, ou mais útil para a causa dos reis, do que o extermínio dos hussitas"[17]

Era essa a verdadeira relação entre a Igreja e o Estado. O Estado não era um vilão malvado que matava pessoas pelas costas da Igreja santa e inocente, mas era um comparsa por ela compelido a continuar matando em nome da fé católica. Antes de surgir o nefasto e abominável revisionismo católico moderno, com a sua meia dúzia de “historiadores” selecionados a dedo e ainda deturpados, virtualmente todos os historiadores do planeta reconheciam este fato óbvio, inclusive Ignaz von Döllinger, que foi o maior historiador eclesiástico do século XIX, o qual afirmou:

"Através da atividade incansável dos papas e seus legados... a posição da Igreja era [que] todo desvio do ensinamento da Igreja, e toda oposição importante a qualquer ordenança eclesiástica, de­viam ser punidos com morte, e a mais cruel das mortes, pelo fogo... Eram os papas que incentivavam bispos e padres a condenar os heterodoxos à tortura, confisco de seus bens, aprisionamento, e morte, e impor a execução dessa sentença às autoridades civis, sob pena de excomunhão... Todo papa confirmava ou acrescentava aos artifícios de seu antecessor... [envolvendo] a Inquisição, que contradizia os princípios mais simples da justiça cristã e o amor ao próximo, e teria sido rejeitada com horror universal na igreja primitiva"[18]

Portanto, da próxima vez que um papista mentiroso e covarde tentar salvar a inquisição católica ou as milhões de mortes da Igreja jogando toda a culpa nas costas do poder civil, jogue os concílios infalíveis da Igreja dele na cara dele mesmo, lhe fazendo correr de vergonha por ter um dia sugerido tamanha sandice de que o Estado matava hereges contra a vontade da Igreja. Isso sem falar que, em alguns casos (e não poucos), eram as próprias instituições da Igreja que se dedicavam a torturar e matar pessoas, sem terceirizar para o Estado, o que posteriormente passou a ser o modelo mais comum. Assim, o Concílio de Tolosa (1229) prescreve:

“Proibimos os leigos de possuírem o Velho e o Novo Testamento... Proibimos ainda mais severamente que estes livros sejam possuídos no vernáculo popular. As casas, os mais humildes lugares de esconderijo, e mesmo os retiros subterrâneos de homens condenados por possuírem as Escrituras devem ser inteiramente destruídos. Tais homens devem ser perseguidos e caçados nas florestas e cavernas, e qualquer que os abrigar será severamente punido”[19]

E o papa Inocêncio IV, em sua Bula Ad Extirpanda (1252), já ordenava torturar o “herege” até o limite da diminuição de membro e perigo de morte:

“Além disto, que a Autoridade ou Dirigente seja obrigado a forçar todos os hereges, os que tiver capturado, a confessar seus erros expressamente, como verdadeiramente ladrões e homicidas de almas, e surrupiadores dos sacramentos de Deus e da fé cristã, e a acusar outros hereges, os que conhecem, e os crentes e os receptadores, e os defensores deles, assim como são forçados os surrupiadores e os ladrões das coisas temporais, a acusar seus cúmplices e a confessar os malefícios que fizeram, até o limite da diminuição de membro e perigo de morte[20]

Essas coisas que vimos neste artigo não foram ditas por um Paulo Leitão ou padre Paulo Ricardo, que são absolutamente insignificantes em termos de representação da Igreja. Ao contrário, foram ditas por papas infalíveis, em concílios infalíveis, ou em bulas infalíveis. A partir do momento em que uma religião proclama como infalível um concílio ou um papa totalmente preconceituoso contra os judeus e que manda matar os hereges em qualquer lugar ou torturá-los até o limite da diminuição do membro e do risco de morte, é que podemos ter alguma noção do fundo do poço em que esta instituição já chegou.

O historiador Jean Duché resume toda essa monstruosidade sem fim presente nos própriosinterrogatórios da Igreja quando diz:

“Torturar um suspeito para obter sua confissão era lhe fazer um favor. Inocêncio IV autorizou a tortura nos casos extremos, e uma só vez; os inquisidores concluíram disso que uma só vez por cada interrogatório. Com o chicote, o fogo, a permanência prolongada no fundo de uma masmorra, assando os pés do acusado com carvões ardendo, amarrando-o sobre um aparato de tortura e separando-o docilmente os membros do corpo com a ajuda de uma tesoura..., tinha que ser o diabo para não obter uma confissão. Certo que o tribunal, em sua sabedoria, sabia que as confissões assim tiradas não tinham valor; e esta dificuldade se remediava fazendo com que o acusado as confirmasse três horas depois, bem entendido que, se se retratasse, poderia voltar a recomeçar a coisa. Esses entravam em um ciclo perpétuo, e aos que se obstinavam em negar e estavam convencidos, e aos que haviam confessado seu erro mas haviam recaído nele, os relapsos, o tribunal os entregava ao braço secular para sua execução, recordando que a Igreja tinha horror a todo derramamento de sangue. Por isso os queimavam: assim o sangue não corria; na Espanha esta cerimônia se chamava um ato de fé, auto da fe[21]

Em todos estes anos de apologética, a única coisa que ainda me inquieta é entender como que certos apologistas católicos, sabendo ser ele um mentiroso, desleal, charlatão, revisionista e desonesto, consegue colocar a cabeça no travesseiro para dormir à noite, consciente de que no dia seguinte irá acordar para enganar mais católicos ingênuos com desculpas que ele sabe que são mentirosas, mas que servem para ludibriar os incautos na defesa de uma Igreja encharcada de sangue.

Sim, na grande maioria das vezes, era mesmo o Estado que matava. Mas o Estado era apenas o cão de guarda da inquisição, cumprindo rigorosamente as ordens de um tirano maior, o qual é ainda mais responsável pelos crimes cometidos. Diante dos fatos históricos incontestáveis, dizer que era o Estado e não a Igreja que matava é, como bem observa Elisson Freire, como dizer que não foi seu cachorro que mordeu, mas sim os dentes do cachorro.

 

 

Paz a todos vocês que estão em Cristo.

 

Por: Lucas Banzoli.